“Para se chegar ao topo da montanha, há muitos caminhos a escolher…” Há que se escolher a montanha que se quer escalar.
Pode ser que você tenha a liberdade de escolher a montanha. Mas pode ser que a montanha escolha você…
Você pode escolher uma montanha apenas porque todo mundo que você conhece escolheu aquela. Pode ser que seja a montanha “da moda”. Pode ser que a montanha lhe pareça bonita. Talvez seja uma montanha inexplorada e/ou particularmente desafiadora e lhe agrada a sensação de perigo. Ou você acha que ganhará fama e riqueza se conseguir. Também pode ser que você espere, como recompensa pelo desafio: ganhar algum tipo de “superpoder” físico, mental ou espiritual.
Saiba por que você quer subir. Talvez você nem saiba por que deseja subir…
Decida se você deve escalar ou, quem sabe, construir uma cabana ao sopé da montanha, à beira do rio que lhe corre por baixo e cultivar a terra. Afinal, a vida na montanha não é para todos… Assim como a vida de agricultor…
Considere, primeiramente, que os montanhistas não são melhores (ou piores) que os agricultores. Não há mais mérito em uma escolha de modo de vida do que a outra. São simplesmente modos de vida diferentes. Você não deve escolher ser um escalador simplesmente pelo glamour de ser um “aventureiro” ou por imaginar que subir montanhas é mais “nobre” ou mais “valoroso” do que ficar no chão, cuidando da terra ou pescando. Isso é mera ilusão!
Escolha ser um montanhista porque você tem afinidade com as montanhas e escolha ser um agricultor se você tem afinidade com a terra. Se sua vibração é montanha, procure uma montanha. Se sua vibração é terra, seja um agricultor. Sem arrependimentos, sem lamentações.
Sendo um montanhista, saboreie a subida íngreme e todas as dificuldades da montanha. Saboreie o ar rarefeito, o frio e os elementos…
Sendo um agricultor, saboreie enfiar as mãos na terra, prepará-la e esperar a vida brotar. Saboreie observar o clima e as estações, saboreie o trabalho duro da colheita…
Não pense que é superior por ser montanhista. Não pense que é superior por ser um agricultor.
“O rio não critica a montanha por permanecer parada.”
“A montanha não critica o rio por lhe correr por baixo.”
No caminho montanha acima, pode ser que você tenha escolhido uma trilha inexplorada (ou mesmo uma montanha inexplorada). Nesse caso, não haverá mapas, trilhas bem definidas, rotas marcadas, guias ou montanhistas mais experientes para ajudar. Apenas você e suas ferramentas.
Caso você tenha escolhido uma montanha que já foi percorrida antes, pode ser que os pioneiros tenham deixado mapas, trilhas, marcas reconhecíveis, histórias, ensinamentos e que tenham deixado indicações de quais ferramentas usar e de como usá-las.
Se for uma montanha muito frequentada, além dos mapas, haverá guias, montanhistas mais velhos (alguns, talvez, dispostos a ajudar), companheiros de viagem com a mesma disposição e experiência que você e que o acompanharão e também escaladores novatos que precisarão de sua ajuda.
Os mapas são os ensinamentos que vem do passado, as ferramentas são as técnicas. O ensinamento e as técnicas devem ser valorizados na justa medida. Serão fundamentais na sua tarefa de subir. Mas, uma vez que você chegue ao topo, pode ser que não sejam mais necessários. Também pode ser que, no caminho até o topo, você tenha que se desfazer delas, pois ensinamentos, mapas, técnicas, ferramentas podem se tornar peso demais para permitir a subida.
Talvez tenha também que revisar certas crenças, pois, afinal, crenças não alicerçadas na realidade da montanha, ou que sejam apenas uma interpretação falsa da Verdade (ilusão), que não se harmonizem com a realidade da montanha divergirão cada vez mais do Caminho e, no fim, te afastarão da trilha.
Para chegar ao topo você poderá escolher muitos caminhos para subir…
Em uma mesma montanha, alguns caminhos serão mais fáceis e outros mais difíceis. Algumas trilhas serão impossíveis, verdadeiros becos sem saída, e você terá que retornar. Retornar para começar tudo de novo por outra trilha ou para buscar mapas e ferramentas mais adequados.
Algumas trilhas serão impossíveis e algumas serão mortais. Seguindo por elas você nunca chegará ao topo. Insistindo nelas a montanha te vencerá, você rolará montanha abaixo e será levado pelo rio, que se encarregará de devolver seus elementos à natureza, a caminho do mar.
Pode ser que você sobreviva à queda e tente subir de novo e de novo. Talvez usando uma trilha diferente, talvez até tentando em uma montanha diferente, dependendo de para onde o rio te carregou.
Para quem sobe a montanha é preciso determinação, disciplina e dedicação. E Fé!
Se você duvidar dos ensinamentos, dos mapas ou das ferramentas, precisará parar e reavaliar. Faça isso com o cuidado e ponderação adequados. Avalie também suas motivações. Porque escolheu esse caminho? Pela recompensa? Qual? A recompensa é real ou apenas ilusão e desejo? Você está subindo por aquele caminho específico apenas pelo ego?
A subida da montanha é árdua. Talvez a tarefa de uma vida inteira. Faça pelos motivos certos e do modo certo. Certo ou errado têm um significado especial aqui. Subir pelos motivos certos quer dizer subir pelo amor à montanha, à vida na montanha, às paisagens, etc. Ou subir para ajudar outros na caminhada… Subir do modo certo quer dizer preservar e cultivar (aprimorar) a si mesmo. Preservar- se e cultivar-se fisicamente, mas também preservar-se e evoluir espiritualmente, ajudando e sendo útil.
Para subir bem a montanha, sendo útil, é preciso desprendimento.
Ao subir a montanha, a oração é importante, tem o seu lugar. Serve para confortar seu coração e/ou o coração dos outros. Serve para agradecer e para louvar. Serve para renovar sua esperança. E a esperança dos outros.
Serve também para pedir, mas que seja para pedir para ou pelos outros, não para si mesmo.
Mas, não se perca em orações a ponto de esquecer-se da subida. As orações podem fortificar sua vontade, mas não vão levá-lo nem um passo adiante e nem vão te carregar montanha acima. Como disse Musashi, um grande escalador do passado:
“Respeite os deuses e o Buda, mas não fique [parado] esperando pela ajuda deles.”
Muitos sobem a montanha esperando que, quando chegarem ao topo, receberão recompensa celestial ou méritos nessa vida ou na próxima. Literalmente sobem a montanha por acharem que, ao final, estarão mais perto do Céu. Tomam a montanha como se fosse uma escada para chegar ao paraíso e o treino, que é a escalada em si, como se fosse uma penitência ou promessa para conseguir algum tipo de recompensa espiritual ou algum mérito especial no mundo espiritual.
Subir a montanha não é religião. Mas pode completar a sua religião, a sua religação.
Basta que você não suba a montanha em busca de recompensas pessoais. Suba e, sempre que puder, ajude, conforte e aconselhe outros escaladores que encontrar. Diminua o ritmo para deixar marcas, abrir trilhas ou desenhar mapas mais acurados para os que vierem depois.
Abra mão da velocidade e da ansiedade em chegar logo ao topo para ajudar, para ser útil.
Assim, a escalada, enquanto treino para aperfeiçoar a si mesmo, torna-se também, Caridade, a verdadeira religião:
“As mão que são estendidas para ajudar, curar ou confortar são mais sagradas que os lábios que oram.”
E, principalmente, não subir pelos motivos “errados”. Não subir esperando conseguir superpoderes físicos, mentais ou espirituais. Nem fama ou imortalidade.
Subir a montanha é aprender sobre a Impermanência. Há um comentário ao Sutra do Coração, feito pelo monge Zen Seung Sahn:
Forma [existência, materialidade] é Vazio [insubstancialidade,vacuidade] – Vazio é Forma – Este é o mundo dos opostos;
Não Forma. Não Vazio. – Este é Nirvana, o mundo absoluto; Forma é Forma. Vazio é Vazio. – Este é o mundo completo. Estes três mundos são o mesmo mundo ou são diferentes?
Se você não entende isso, então, você deve tomar um pedaço e carne e dá-lo a um cão faminto.
Esse cão vai ensinar-lhe o significado do Sutra do Coração.
Assim como o agregado de matéria e energia, mente, espírito, emoção e crença que é você, nesse instante, com o tempo se decomporá e será desfeito e é, portanto, essencialmente impermanente. A montanha também é, no fim, impermanente.
Você e amontanha são impermanentes. São Forma (corporeidade), mas também são Vazio (apenas inter-relação ou entrelaçamento de circunstâncias, são momentâneos). A dificuldade da subida serve para “dobrar” o ego de forma que você (seu “eu interior”) perceba que você e a montanha, você e o rio, o rio e a montanha são essencialmente Um.
No final, a recompensa nem mesmo é, necessariamente, chegar ao topo. Chegar ao topo também é uma “ferramenta”. Um meio para um fim. O mais valioso em se chegar ao topo é o esforço transformador pelo qual você passará para chegar lá.
A recompensa, então, nesse sentido, é algo inefável, incorpóreo, sem forma e, não sendo algo concreto é, na verdade, o Vazio:
É a vista da Lua em toda a sua glória!
Sem impedimento em nenhuma direção, pois do topo da montanha pode-se enxergar todo o firmamento.
“Para se chegar ao topo da montanha, há muitos caminhos a escolher…” “Mas, todos que chegarem lá verão a mesma Lua.”
Por isso não se deve criticar os que escolheram caminhos diferentes do nosso, invejar os que escolheram caminhos mais fáceis e/ou que chegaram primeiro, admirar exageradamente os que escolheram caminhos mais árduos, desprezar ou ter pena dos que ficaram pelo caminho, desistiram, ou mesmo dos que não tentaram subir.
Quem ficou no vale ou quem subiu, ao longo do tempo também teve vislumbres da Lua. Os que ficaram ao sopé da montanha cultivando a terra puderam observar a Lua de suas cabanas. Os que subiram apenas até certo ponto, mesmo não chegando ao topo, puderam, eventualmente, observar a Lua. Seja entre as folhas durante a subida, seja porque desistiram de ir mais alto e fixaram-se em alguma clareira confortável na encosta da montanha. Todos podem ter a Lua. E ninguém pode.
Mas, todos que chegarem ao topo verão a mesma Lua.
Pode ser que, no início da subida, tenham pensado que a Lua era mais magnífica no alto da montanha. Na verdade, simplesmente terão uma visão desimpedida da Lua. Mas será sempre a mesma Lua. Para os que subiram e para os que não subiram.
No entanto, quem chegar ao topo, verá a Lua de modo diferente… Quem se modificou? Foi a Lua? Ou o alpinista?
E se a Lua será a mesma, então, porque subir, em primeiro lugar?
Imagine o diálogo entre alguém que subiu e depois desceu e alguém que ficou no vale: Como era a Lua, lá no alto da montanha?
A mesma vista daqui de baixo! Então, porque você subiu?
Se eu não tivesse subido, como eu saberia que a vista da Lua é a mesma?
Obviamente que o montanhista poderia saber, baseado na teoria e na razão, que a vista da Lua não seria diferente mesmo antes de subir. Mas esse conhecimento fica apenas no campo da razão.
No campo da crença e da emoção, no seu coração, você só conhecerá a diferença e a semelhança após subir a montanha e apreciar o espetáculo.
E, mais importante: subir a montanha não vai tornar a Lua mais próxima. Pelo menos, não o bastante para que você possa alcançá-la. A distância da Terra à Lua é tão maior que a altura de qualquer montanha que, após subir, você ainda estará praticamente à mesma distância de quem ficou no Vale.
A montanha é sólida, durável. O rio é fluido, passageiro. Jamais é o mesmo, de instante a instante, sempre mudando.
Não alimente ilusões de eternidade ou imortalidade. Não ache que vai conseguir isso só porque é um montanhista e decidiu subir a montanha. Nem ache que os que ficaram lá embaixo, na beira do rio, são menos especiais, são mais mortais ou são menores e, por viver ao sabor do tempo, são inferiores ou mais passageiros.
A montanha é apensa ilusoriamente eterna ou permanente. Dia a dia, o rio carrega um pouco dela para o mar. Um dia, com a erosão, não haverá mais montanha. Apenas areia no fundo do mar. E como muda a face da terra com o tempo, num futuro mais ou menos distante, nem mesmo o rio haverá…
O reflexo da Lua permanece imóvel quando se observa o rio. Apenas um reflexo. Apenas luz. Sem peso, mas não pode ser tocada ou movida. Assim como a Lua lá no céu. A Lua “real” também não pode ser tocada, por mais alta que seja a montanha em que subiu.
No fim, você subirá a montanha apenas para aprender o Sutra do Coração:
“A Forma é Vazio. O Vazio é Forma.”
“A Forma não difere do Vazio, nem o Vazio difere da Forma.”
Após subir a montanha e olhar a Lua do Topo, você não estará mais próximo fisicamente dela.
Mas percorrer o caminho apenas pela jornada, saboreando e aprendendo sobre si mesmo e sobre o caminho a cada passo, sem esperar recompensas, apenas para apreciar a vista da Lua no topo quer dizer subir com o coração puro, livre de ilusão e de desejo. Leve.
O esforço da subida, a dor no corpo, o frio, o medo, a esperança, a fé, a experiência de compartilhar, de ajudar os outros caminhantes e de ser ajudado, as técnicas que se executará tantos milhares de vezes, as ferramentas que serão usadas até perder o corte e que junto com técnicas, mapas e bagagem, perderão a importância intrínseca quando se chegar ao topo e deparar-se com a Lua.
Assim como uma boa subida faz bem para o coração físico, por ser exercício aeróbico e o exercício continuado torna seu coração maior e mais forte, percorrer o caminho de subida “espiritualmente”, isto é, sem ilusões de grandeza e sendo simplesmente útil, tornará seu coração maior e capaz de conter, em si, aquela bela Lua lá em cima.
Esse é a verdadeira recompensa do caminho:
A Lua em seu coração!
Brasília, 28 de abril de 2013.
Anderson Gomes de Oliveira