Aikidô e Sorriso.

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Aikidô e Sorriso.

Ippon X Sorriso

 

Neste último sábado o treino de graduados foi especialmente significativo para mim.

Começamos com um aquecimento reduzido e logo passamos a treinar algumas técnicas para defesa contra armas. Dois de nossos nidan (2º Dan) estão treinando para se candidatar ao exame de sandan (3º Dan) e, por isso, escolhi técnicas mais específicas do exame deles.

Também estava ansioso para passar adiante e testar com parceiros diferentes os resultados da pesquisa efetuada durante a semana, que fora muito rica em perguntas e respostas tanto em termos técnicos quanto em termos de postura e atitude marcial.

Durante a semana eu treinara com os dois candidatos algumas vezes e também conversara com eles, por e-mail, sobre vários assuntos relativos à prática.

Assim, várias dúvidas (técnicas e teóricas) surgiram, tanto para eles quanto para mim. Para algumas delas eu tinha as respostas, mas ainda me faltava pensar em como passar esse conhecimento adiante. Para outras eu tinha como responder, mas as respostas me pareceram muito superficiais e eu mesmo não estava satisfeito com elas. Finalmente houve dúvidas que eu realmente não tinha como responder.

Assim, pensei e treinei muito durante a semana e estava ansioso para que chegasse o treino de graduados da sexta-feira para poder me consultar com meu colega de treino mais inspirador, o Prof. Jadir, que, como eu, também é yondan (4º Dan), mas cuja postura tranquila, humilde aliada a uma invejável capacidade de invenção e improviso sempre têm me servido de apoio quando tenho dúvidas, especialmente depois da passagem de nosso mestre.

Assim, na sexta pela manhã começamos a aula e escolhi justamente os tópicos em que estava com dúvida. Comecei atacando justamente para estudar como ele solucionaria os problemas colocados pelos tipos de ataque se situações em que eu tinha dúvidas.

Juntos, acabamos construindo boas soluções para todas elas. Acabamos a aula com a refrescante satisfação de termos, ambos, aprendido um pouquinho mais.

Apesar de ser um ponto paralelo ao objetivo de nossa discussão, gostaria de me deter aqui por um instante. Gostaria que ficasse bem clara a importância de que se reveste o trabalho em equipe na nossa arte.

As soluções que conseguimos, quando foram apresentadas no dia seguinte aos alunos que estavam nas aulas sempre podem ser vistas por alguém desavisado como tendo sido resultado do esforço e inspiração de um só. Realmente, quando dei a aula no sábado, mostrando de forma sistematizada o que tínhamos aprendido, percebi em alguns alunos um olhar de admiração como se eu estivesse apresentando descobertas minhas.

Nada está mais longe da verdade.

O conhecimento foi construído COLETIVAMENTE.

Vejam bem isso: partimos de algumas dúvidas que tivemos, eu e alguns alunos avançados do mesmo mestre.

Ora, para haver dúvidas é necessário que haja, previamente, alguma base em que se apoiar. Esse conhecimento, ainda nebuloso em nossas cabeças, veio de nosso mestre, do mestre dele antes disso e do mestre do mestre dele antes. Todas as coisas em que tivemos dúvidas nos foram, antes, apresentadas por ele. Algumas aprendemos, outras não entendemos direito, mesmo ele tendo mostrado tudo que havia para saber e, em outras ainda, ele mostrou apenas parte do mosaico. Em alguns casos mostrou parcialmente porque deliberadamente esperava que descobríssemos o que faltava. Em alguns casos, como acontece com todos nós, e com o conhecimento de maneira geral, ele, embora mestre, ainda estava aprendendo, testando ou, simplesmente ainda não tinha uma boa resposta…

Então, temos o trabalho anterior do mestre e dos mestres que vieram antes dele. Temos também, o trabalho e conhecimento trazido por outros mestres, que foram importantes no nosso aprendizado. Apenas para falar de mim, entram nessa história ensinamentos de Shikanai Sensei, nosso Shihan, Nelson Sensei, meu instrutor de Jodô e também mestre de Aikidô, que sempre tem a gentileza de compartilhar muito conhecimento de Aikido comigo embora eu não seja, formalmente, aluno direto dele. Entram também os ensinamentos de Nilton Sensei, meu mestre de Karatê e de todos os mestres de Aikido ou Karate em cujas aulas ou seminários participei.

Da parte de meus colegas, temos uma variedade de experiências paralelas que influem nessa construção de conhecimento. Uns treinam Jodô, outros treinam Kendô e alguns ainda treinam Kyudô (arco e flecha) e Iaidô…

Percebam o quanto de gente participa numa descoberta, pequena ou grandiosa que seja, direta ou indiretamente.

Nessa primeira parte do trabalho, eu e Jadir fomos catalisadores. Não inventores ou descobridores, no sentido amplo do termo. Fomos simplesmente pesquisadores provocados por curiosidade, ou necessidade de nossos alunos e nossa também.

Vinha agora a segunda parte, que seria apresentar o conhecimento adquirido aos alunos e colegas no treino de sábado.

Durante o restante do dia na sexta-feira, tentei em cada intervalo livre, sistematizar, na minha mente, o que mais cedo tínhamos aprendido com o corpo.

Confesso que no sábado estava apreensivo. Imaginei que haveria questões e discussões. Houve questionamentos simples, fáceis de responder, assim como argumentos fáceis de demonstrar ou rebater. Todos esses, como dúvidas honestas de pesquisadores interessados, serviram para realimentar a estrutura e sistematização que tinha imaginado previamente e, foram, no final, mais uma fonte para melhorar o que tínhamos adquirido.

Posso dizer com certeza, que, dos pontos que treinamos na sexta-feira e que foram apresentados no sábado, saímos com uma compreensão melhor ainda do havia no início da aula.

Novamente, esse é o ponto mais importante, foi um empreendimento coletivo.

Nada do que foi ensinado e aprendido foi uma descoberta minha ou dos yondan exclusivamente: O conhecimento veio de todos!

Outra coisa também importante nesse processo é que deve ficar bem claro para todos que não houve e não há respostas definitivas.

Tudo o que treinamos pode e será aperfeiçoado nos treinos que virão, cada um de nós descobrirá coisas novas e, mais importante, à medida que aprender mais, terá novas dúvidas. Assim caminha o conhecimento, na arte e na ciência. Não é diferente no Aikido, ou no Budô, de um modo geral.

Depois de uma volta tão grande, retorno ao tema principal.

Algo especial aconteceu durante o treino. Não é uma experiência tão incomum assim e já tem acontecido algumas vezes, tanto comigo quanto com outros professores que já observei. Mas eu ainda não tinha me dado conta do alcance e da importância disso.

Demonstrei uma técnica. Nesse caso, demonstrei e treinamos primeiramente na “forma padrão”, ou seja, como normalmente ensinamos e treinamos essa técnica com os principiantes e, depois que todos repetiram algumas vezes, parei o treino para mostrar/recordar uma variação ensinada pelo nosso mestre muito tempo atrás e apenas para alguns que estavam presente naquele dia.

Nessa variação em particular, o conceito de “entrada” ou primeiro movimento para “encontrar” o ataque do uke e “conectar-se” é bem diferente do usual e bem mais refinado. O caso é que essa variação, especialmente a entrada, se aplica muito melhor no caso de defesa contra armas brancas e bastão, que foi o tema da parte inicial da aula.

Escolhi um uke que ataca particularmente rápido e forte para que o conceito ficasse bem realçado. Depois que demonstrei algumas vezes, percebi uma “cara de interrogação” nos colegas e percebi que não tinha conseguido enfatizar o suficiente as diferenças e/ou as vantagens daquela variação em particular.

Resolvi então enfatizar mais e fiz como o mestre havia me demonstrado pela primeira vez. Recuei até ficar de costas para a parede, de modo a não ter como recuar mais e pedi que o uke atacasse novamente.

O ataque foi particularmente rápido e, talvez por eu estar “encurralado” e a sensação de perigo e urgência ser maior, consegui aplicar a técnica enfatizando bastante o aspecto que queria demonstrar. Dessa vez a conexão ficou tão boa e consegui executar o movimento de forma tão relaxada que, contrariamente ao que se podia esperar por conta da velocidade do ataque, o uke foi levado ao chão suavemente. Tão suavemente que foi completamente inesperado, tanto para mim quanto para o uke.

O uke caiu rindo!

E eu também não pude deixar de sorrir.

Voltaremos a esse ponto chave logo. Por enquanto, continuo a narrativa:

No espírito de pesquisa que procuramos manter na aula dos mais avançados, um dos colegas perguntou se poderia executar-se a mesma coisa de certa maneira, que ele tentou explicar/resumir com palavras. Como eu não entendi direito (coisa bastante comum comigo), pedi que ele se levantasse e, colocado na mesma situação (contra a parede), fosse atacado pelo mesmo uke.

O colega efetuou uma defesa soberba e levou o uke ao chão e imobilizou tão ou mais rapidamente do que eu fizer há pouco. O movimento foi executado tão rapidamente e com tanta destreza que ficamos todos admirados e o uke, perplexo.

Curiosamente a defesa e entrada que ele fez foram quase exatamente como nos é ensinado no kata Suparinpei, do estilo Goju Ryu de Karatê. A admiração veio do fato de que esse é o kata mais avançado do estilo e o colega em questão jamais treinou esse tipo de Karatê, quanto menos esse kata ou sua aplicação, que só é ensinado para praticantes avançados do estilo. Isso foi surpreendente em si mesmo, porque ele “descobriu/inventou” uma técnica antiga ao realizar a defesa. Nesse sentido, como pesquisador, fiquei muito feliz e isso já seria o bastante para eu me dar por satisfeito em termos de descoberta, não fosse por algo que me ocorreu no instante seguinte:

Lembrei-me de perguntar ao Uke qual das duas quedas/imobilizações tinha sido mais agradável.

O uke respondeu sem pensar: a primeira maneira!

Esse me pareceu um ponto realmente essencial de nossa prática e que, acho, merece muita reflexão, pois tem reflexo e extensões em tudo o mais que fazemos ao treinar Aikidô.

Tecnicamente e também do ponto de vista prático de defesa pessoal, ambas as maneiras são válidas e, devo dizer que, de certa forma, a maneira demonstrada pelo colega me pareceu, sob esses quesitos bem melhor que a maneira que eu demonstrara.

No entanto, como eu disse antes, embora o fato em si de o uke cair sorrindo e ser imobilizado “agradavelmente” e não “agressivamente” já tenha me ocorrido outras vezes, eu nunca tinha reparado como isso tem a ver com uma questão profunda do Budô:

A atitude do praticante deve ser altamente focalizada e “agressiva” (“verdadeiramente marcial” ou “com intenção” como dizem alguns) ou deve ser, por outro lado, branda, relaxada e serena (menos marcial como diriam alguns)?

A questão persegue todos os praticantes sérios e, claro, me perseguia também até aquele momento.

Eu digo percebia, pois naquele momento percebi o verdadeiro valor do “sorriso do uke”.

O referencial teórico do Aikidô está nas palavras do seu fundador e, muitas vezes ele repetiu que “Budô é amor” ou que “a verdadeira função do Budô é ensinar o respeito por todas as coisas vivas”.

Isso, à primeira vista parece um paradoxo: Se é uma arte marcial, uma arte da guerra, o que pode ter a ver com amor e proteção?

Há um sentido primário em que é fácil entender isso: Saber defender-se pode servir para salvar sua vida ou a de seus entes queridos em caso de emergência e também, pode contribuir para a sociedade quando alguém usa seu conhecimento marcial para combater uma injustiça protegendo alguém ou algum dos valores dessa sociedade.

Esse é o aspecto omote, ou superficial.

Mas a ideia do fundador parece ir além e englobar, naquilo que deve ser cuidado e protegido, também a pessoa do atacante.

Naquele sábado o paradoxo ficou um pouco mais claro para mim, ao menos do ponto de vista racional, pois acho que finalmente captei a ideia e algumas de suas ramificações.

É claro que Budô é a arte da guerra. Mas a definição de guerra não é tão precisa assim. Existe a guerra para destruir, vencer e subjugar os outros, mas existe também o combate para vencer a si mesmo. Ser senhor de si mesmo significa, entre outras coisas, poder escolher entre destruir e preservar.

Significa LIVRE-ARBÍTRIO.

O “sorriso do uke” me pareceu uma demonstração concreta desse princípio.

O fundador do Aikidô por vezes é criticado nos círculos marciais mais tradicionais como tendo criado uma arte não marcial ou uma forma “aguada” das antigas artes marciais dos samurais. Talvez não houvesse críticas assim no tempo de vida dele ou elas fossem mais veladas por conta de sua autoridade moral. De qualquer modo sabe-se que, historicamente, muitas vezes ele foi desafiado por praticantes de outras artes que duvidaram que o que ele demonstrava pudesse ser “eficiente em combate”.

Hoje em dia há muitas críticas de fora (outras artes) e mesmo, por vezes, muitas dúvidas por parte dos próprios praticantes de Aikidô. Algumas vezes, e já testemunhei isso, alguns praticantes “perdem a fé” e acabam abandonando a arte ou deixando seus mestres e indo à procura de outros que pareçam “mais marciais”.

Acho que as críticas tem fundamento do ponto de vista eminentemente prático. A questão é que me parecem mal colocadas e fora de contexto pelo simples fato de não considerarem talvez a coisa mais básica: O conceito de arte marcial do fundador cuidava muito mais da questão da guerra ou combate para vencer a si mesmo do que o combate para vencer outros.

Creio que ele, ao criar o sistema do Aikidô, ou ao menos delinear a forma disso para seus primeiros discípulos, deliberadamente alterou a estrutura das técnicas do passado de modo a incluir esse conceito de preservação e obliterar o de destruição.

Meditando sobre a forma que realizamos as técnicas, além do “sorriso do uke” podemos perceber com uma análise mais aguda que, em muitas técnicas, na maioria delas talvez, durante a execução o praticante, ao executar corretamente, tem condição de, a cada momento, aplicar uma “finalização” e “encerrar” a disputa. Ao invés disso, deliberadamente, mesmo não sabendo disso conscientemente nos primeiros estágios do treinamento, o praticante vai passando pelos pontos ideais de aplicação de uma “solução final”, praticamente ignorando a possibilidade de realizar um estrago definitivo e encerrar o “combate” e caminha em direção a imobilizar ou arremessar o atacante da forma mais branda possível, isto é, causando o mínimo dano.

Esse conceito de MÍNIMO DANO me parece importantíssimo.

Ao realizar uma técnica, caso analise em profundidade, a cada momento, antes da finalização proposta pelo “cânone” do Aikidô, você passará por várias oportunidades de machucar o uke e colocá-lo fora de combate.

Uma técnica de Aikidô aplicada “corretamente” cria várias brechas e aberturas na defesa do uke que, poderiam, em princípio, ser aproveitadas para finalizar ou nocautear o oponente. No entanto, embora essas brechas na armadura sejam criadas deliberada e sistematicamente, não se tira proveito disso deliberadamente (agora eu percebo) e continua-se executando a técnica até não haver mais o que se fazer, pois a energia disponibilizada pela agressividade do atacante esgotou-se.

Pense numa situação de conflito como um incêndio. Não um incêndio comum, mas um incêndio em um poço de petróleo, como os que ocorreram no Kuwait após a invasão do exército do Iraque.

Para apagar um fogo assim, energia disponível e os materiais combustíveis presentes estão em tão grande quantidade que única maneira conhecida de extinguir o fogo é causar deliberadamente uma explosão. A explosão, de tão violenta, arranca por um instante todo o oxigênio disponível, causa um vácuo provisório, e o fogo se apaga.

O Budô, arte da Guerra contra o outro, baseia-se nesse princípio. O praticante treinado “explode” em técnica e esgota a energia agressiva do outro, colocando-o fora de combate e, portanto, sem intenção de atacar mais.

O dano aqui não é mínimo. Destrói-se o poço de petróleo para apagar o fogo.

Por vezes, como no caso do poço de petróleo, uma solução assim radical é inevitável por ser a única possível naquela situação e contexto.

No entanto, não vamos por aí apagando os incêndios comuns jogando querosene neles. Para a maioria dos incêndios há escolhas mais brandas, que envolvem introduzir no ambiente algo que abaixe o nível de energia o bastante para extinguir o fogo causando menor dano possível.

Usar uma bomba para apagar uma fogueira seria equivalente a usar um tanque de guerra para matar uma barata.

Mas o fundador ensinou de certa forma, que há outra maneira. A maneira da preservação.

As oportunidades de, no momento da defesa, aplicar uma técnica finalizadora, continuam existindo ao se aplicar as técnicas corretamente. No entanto, a forma do Aikidô (alguns diriam a não-forma) deliberadamente ignora essas oportunidades e evolui no sentido de causar o mínimo dano .

A ideia central do treinamento de Budô permanece: repetir vezes sem conta até que as reações se tornem inconscientes, reflexos condicionados.

No entanto, nas artes que ainda aderem à definição de Budô como “arte da guerra para sobrepujar”, o reflexo que se condiciona é o de colocar o adversário fora de combate o mais rápido e eficientemente (com o mínimo de energia perdida) possível.

No Budô de Ueshiba, a arte da guerra para vencer a si mesmo e preservar o outro, o reflexo que se condiciona é o de preservar.

Isso tem implicações muito profundas, percebem?

Procura-se, usando o método sistemático consagrado do Budô (repetição), ensinar ao subconsciente a ter o LIVRE-ARBÍTRIO.

Não se trata mais de treinar o bastante e tantas vezes para tornar as reações de ataque e defesa em reflexos condicionados e deixar o instinto (o subconsciente) agir em caso de perigo.

Trata-se agora de ensinar o subconsciente a poder escolher de acordo com uma ideologia treinada e repetida tantas vezes pelo corpo, mente e espírito. Esse é o significado de vencer a si mesmo.

Uma ideologia essencialmente conciliadora, de aceitação.

Assim, cria-se um conceito novo e, talvez essa seja uma das maiores contribuições do fundador do Aikidô. Uma arte da diplomacia e negociação.

Ao executar uma técnica você não tenta, desde o princípio, subjugar ou colocar fora de combate, ao invés disso você tenta, a cada momento, fazer um acordo. Ao invés de contrariar e entrar em choque com o outro, você tenta conectar/sintonizar e conduzir a uma solução de menor dano. Um meio termo, uma solução negociada.

Não é essa a essência da negociação e dos acordos. E, por fim, da diplomacia?

Diplomacia e Estratégia não são opostas, mas como Yin e Yang, são complementares.

Por isso Aikidô é Budô, a arte da guerra e, claro, do seu complemento, a diplomacia.

Não é por acaso que consideramos o sorriso e o aperto de mãos como o coroamento de uma negociação bem-sucedida.

Por isso o “sorriso do Uke” é tão importante!

Esse sorriso mútuo é o nosso “prêmio”. Nosso “troféu” por uma negociação bem sucedida.

No Aikidô procura-se não apenas arrancar a faca ou a espada do atacante, uma vez que essas armas são um símbolo da concentração da vontade “negativa “do uke de tentar me “aniquilar”. Procura-se também, e talvez isso seja mais importante, arrancar um sorriso do agressor.

Arrancar a faca significa, simbolicamente, tirar a vontade dele de me atacar. Arrancar um sorriso (mútuo) significa, simbolicamente, não deixar mágoa no espírito dele.

Assim, há um significado profundo na maneira de lidar com atacantes armados no Aikidô. Com certeza há maneira melhores, tecnicamente falando (e também do ponto de vista de eficiência) de se desarmar alguém do que tentar tomar a arma do outro causando mínimo dano. Poderia pensar-se, por exemplo, em jogar a arma longe, aplicar chaves que, pela dinâmica do movimento, fizessem o atacante cortar-se, ataques simultâneos ao corpo, em pontos sensíveis da anatomia, usando punhos e pés, cotovelos, joelhos, etc buscando colocar fora de combate diretamente, etc.

Mas não, as técnicas são classificadas como jo-dori (tomar o bastão), tachi-dori (tomar a espada) e tanto-dori (tomar a faca). Isso quer dizer que eu devo aplicar uma técnica tipo-Aikidô (mínimo dano) e devo ficar com a arma em meu poder.

A arma não é para ser um troféu e, claro, em se tratando de espadas, bastões e facas, sabemos, ou deveríamos saber, que no caso de um atacante muito habilidoso, é muitíssimo difícil conseguir retirar-lhe a arma.

Mas, mesmo assim, treinamos…

Tais técnicas não vão nos tornar invencíveis e muito menos capaz de defendermo-nos de qualquer atacante armado.

Do ponto de vista do treinamento, podemos pensar que há um objetivo superficial (omote) que é a questão da autodefesa, de aprender nova distância, novo tempo (cadência) e, pela dificuldade, melhorar a execução das mesmas técnicas quando feitas de mãos vazias.

Há também, pelo menos dois níveis de objetivo mais profundos (ura). O primeiro é conseguir vencer o medo de ser atingido pela arma e, assim reforçar a “fé” nos princípios aprendidos com as mãos vazias. Tendo em vista o perigo representado pela arma, a questão de alerta (zanshin) e execução sem falhas, até o fim, sem engolir pedaços do movimento e nem precipitar-se por ansiedade (kime) são reforçados.

Finalmente, no segundo nível de ura, há a questão de não deixar-se dominar pelo medo (em relação à sensação de perigo) e, numa reação normal causada pela liberação de adrenalina, não deixar-se levar pela emoção e reagir mais violentamente do que o normal (como reagiria em relação a um ataque de mãos vazias). Deve-se manter a tranquilidade de sempre. Esse é o autocontrole que significa vencer a si mesmo.

Lembro-me da prática de Karatê, especialmente de quando, adolescente (isso no século passado), eu competia…

Por vezes (raríssimas), numa situação de combate, o corpo simplesmente se movia e aplicava uma técnica. Tanto eu quanto o oponente ficávamos surpresos. Ele por ter sido atingido tão adequadamente, e eu por ter conseguido mover-me daquele jeito naquele preciso momento.

Algo executara a técnica e não o meu lado consciente. A sensação de perplexidade vinha do fato de que não houvera planejamento consciente ou vontade. Simplesmente ocorrera.

Ippon!!!

Mas o fato é que, depois do “susto” e da sensação de perplexidade vinha uma sensação de júbilo. Um orgulho completamente despropositado, pois, afinal, não fora eu que executara a técnica. Algo executara. Do mesmo modo, no oponente, uma vez passada a surpresa, vinha a sensação de derrota, de perda.

Não havia essa sensação de “sorriso”, muito menos de “sorriso mútuo”.

É uma sensação muito boa essa de sorriso que finaliza a técnica. Sorriso e contentamento para ambos.

Não quero aqui criticar os outros tipos de Budô (que eu também pratico e amo). Embora a abordagem seja, nesse ponto, fundamentalmente diferente, o crescimento espiritual do praticante corre por outros caminhos. Não são raros os casos de praticantes dos mais diversos tipos de Budô que atingem um grau de espiritualidade, gentileza e humanidade magníficos através das suas respectivas artes.

O Aikidô não é, em si, melhor que os outros Budô, do ponto de vista ético ou moral. Simplesmente, no Aikidô, escolhe-se essa abordagem de conciliação desde o princípio e ela está embutida na própria arquitetura das técnicas, na forma que elas foram construídas. Não é apenas uma atitude que se cultiva lado a lado com técnicas de defesa-pessoal e de combate, mas sim, uma atitude que se aprende pela própria forma das técnicas.

Nos outros Budô, de certa forma, aprende-se a escolher o caminho da paz depois de infinitas vitórias e derrotas (derrotas que são, na verdade, mortes simbólicas). Aprende-se empatia com o outro ao sentir-se na carne a dor dos golpes, por assim dizer e, com o tempo, desenvolve-se uma atitude empática seguindo por um caminho indireto. Espera-se que, de tanto experimentar vitória e derrota, o praticante desenvolva uma capacidade de julgamento e uma atitude de preservação do outro. Lado a lado com o conhecimento e “poder” adquiridos com a maestria técnica e capacidade de derrotar, espera-se que o praticante desenvolva COMPAIXÃO.

O Aikidô espera ser um CAMINHO DIRETO para desenvolver essa mesma EMPATIA e COMPAIXÃO.

O fundador, com sua preocupação moral e ética de criar um Budô não-destrutivo, criou também uma obra de arte.

Conseguir aplicar uma técnica de Aikidô assim, com esse espírito e resultados, é como observar o nascer do dia. De repente, por sobre o horizonte, surgem os primeiros raios e, por fim, o Sol em toda a sua glória.

Como ouvir as “Quatro Estações” serem tocadas por magníficos violinistas.

Uma obra de arte diferente, cuja beleza e prazer estéticos não aparecem completamente para quem apenas observa.

Para apreciar profundamente é preciso PARTICIPAR da conexão, seja como o nage, que “vence”, seja como uke aquele que “perde”. Nesse Budô, perder e vencer perdem o significado. Como não há significado em perder e vencer para os membros de uma orquestra que executam, juntos, uma sinfonia e nem para o casal de dançarinos que se move ao sabor do tango.

Com efeito, uma arte da negociação e da harmonia e, também, uma obra de arte em si mesma. Um prazer para o espírito.

Anderson Gomes de Oliveira

Brasília, 26 de outubro de 2012.