Michi, o Caminho

Home / Artigos / Michi, o Caminho
Michi, o Caminho

Dentre as várias abordagens para o aprendizado a que já fui exposto, seja na minha vida acadêmica, seja no trabalho ou no dojô, notei um paralelo com a maneira como a Física é ensinada e como o Budô é ensinado.

Na física, um dos paradigmas de trabalho, até mesmo porque foi a primeira física a ser formalizada, é a mecânica clássica. Os outros ramos da física evoluíram usando e adaptando os métodos da mecânica ou, em alguns casos, quando a mecânica clássica falhou, mesmo assim a criação de novos métodos e abordagens seguiu de perto analogias com o comportamento de sistemas mecânicos clássicos.

Assim, os físicos são expostos à Mecânica pela primeira vez no ensino médio. Tão logo aprendemos um pouco de geometria plana, trigonometria, geometria analítica e funções, começamos a aprender os fundamentos da mecânica clássica. Usualmente aprendemos cinemática e dinâmica no primeiro ano do ensino médio.

Quando entramos no curso superior, em geral aprendemos, paralelamente, cálculo diferencial e integral da matemática e fazemos a nossa primeira disciplina de física, geralmente chamada de Física 1 que, no fim das contas, trata-se da física do ensino médio revisitada.

Como agora estamos aprendendo cálculo, muitas das coisas que antes nos eram dadas como fórmulas prontas podem ser agora deduzidas. Você aprende uns poucos princípios básicos (algumas definições e as Leis de Newton), junta com um pouco de cálculo e aí, surpresa! Você não precisa mais saber as fórmulas de cabeça, você pode, analisando um problema, usar os princípios básicos e cálculo (a quantidade e a dificuldade dependem do problema, claro), simplesmente encontrar as fórmulas necessárias e resolver.

O tempo passa e você vai aprendendo mais cálculo, equações diferenciais, álgebra linear e aí aparece uma disciplina chamada Mecânica Clássica. Nela, você revisita os mesmos problemas com que se deparou lá no segundo grau e no primeiro semestre, na física I, só que agora, você, com novos conhecimentos, consegue abordá-los de novas maneiras. Problemas que antes eram dificílimos de resolver (e mesmo de começar a analisar) cedem facilmente diante dos novos métodos, especialmente os métodos de Lagrange.

No semestre seguinte, você vai para a Mecânica Clássica 2 e lá vêm, de novo, os mesmos problemas e novos métodos, especialmente o método de Hamilton, que permitem que você solucione os mais intricados quebra-cabeças, que eram quase  completamente impossíveis na Física I (do tipo que você não sabia nem errar, não sabia nem por onde começar a armar o problema para tentar resolver).

Mais adiante, no mestrado ou doutorado, você ainda vai encontrar Mecânica Clássica Avançada 1 e 2 e, dependendo da universidade ou da sua área, ainda outras Mecânicas mais “exóticas”.

O ponto aqui, é que, passa o tempo e os estudantes de física estão, ao longo dos anos de sua formação, estudando a mesma mecânica clássica. Os mesmos fenômenos que são parte do escopo dessa mecânica são vistos e revistos.

Um de meus professores de Física um dia chamou esse método de ensino em espiral.

A analogia com a espiral me parece bastante adequada. Note que não se trata de ensino em círculo, pois, embora você esteja sempre voltando aos mesmos tópicos e resolvendo o mesmo tipo de problemas, você não está fazendo exatamente a mesma coisa. A cada volta, você passa, por assim dizer, a enxergar os mesmos problemas de uma nova perspectiva.

O ensino do Budô não é muito diferente. Se você reparar bem, à medida que você passa mais tempo no dojô, você vai revisitar os mesmos problemas. Caso você esteja sob a tutela de um bom mestre vai notar também que ele tende a se concentrar em técnicas básicas. Ele te mostra o básico, você pratica por um tempo e aí ele vai passando por outros tópicos mais complexos até que, quando você menos espera, ele está de volta às velhas técnicas básicas. Daí, ele deixa você com elas por um tempo (ou as revisa todo santo dia na parte inicial ou final da aula) e depois passa a outros itens mais complexos do currículo. Passa o tempo e, de novo, lá vêm as técnicas básicas.

É a versão Budô da Lei do Eterno Retorno, eu acho.

Podemos imaginar esse tipo de ensino como uma grande torre. Uma torre muito alta com uma escada em caracol na sua parte interna. Imagine que essa escada, a cada volta, tem um pequeno patamar, que permite que você pare para observar a paisagem por uma janela. Assim, os nossos pontos de parada ocorrem cada vez que você dá uma volta e ficam todos voltados para a mesma direção, as janelas ficam uma acima da outra e todas apontam para o mesmo lado. O leste, por exemplo.

Se nossa torre for muito alta e a escada for muito pouco inclinada (os andares têm o pé-direito baixo), acho que temos uma boa analogia com o ensino do Budô.

A cada volta, você se depara com a mesma paisagem. A diferença do que você vê pela janela entre um nível e outro (digamos entre o primeiro e o segundo andares) não é muito grande, mas, à medida que você vai subindo, detalhes da paisagem que você não percebia antes começam a aparecer.

Quanto mais você sobe, mais coisas que escapavam à sua visão aparecem. Note que você está, a cada parada, olhando exatamente na mesma direção e, portanto, em princípio, vê a mesma paisagem.

O que muda é a PERSPECTIVA.

Você vê as coisas de modo diferente porque você não é mais o mesmo. Você subiu mais um pouco desde a última volta, galgou mais degraus e, portanto, agora, de certa forma, está preparado para ver coisas que não via antes. Pense nos degraus como se fossem as dificuldades do treino, tanto as técnicas quanto as emocionais, psicologias, etc.: à medida que você vence etapas e galga os degraus, você passa a ver as mesmas coisas de modo diferente.

Pode ser que, à medida que você suba, algo bloqueie a sua visão, ou ainda, pode ser que você sinta a necessidade ou curiosidade de descer alguns níveis para olhar a paisagem por outro ângulo, mesmo que seja um ângulo que você já viu. Pode ser que você sinta a necessidade de esclarecer algum detalhe ou então ver algo “por baixo” para poder tentar avaliar ou antecipar o que virá mais adiante, nos andares de cima.

Agora imagine a sua cidade. Suponha que seja a cidade onde você nasceu. Suponha também que você anda muito pela cidade e a conhece bem.

Um belo dia você sai em viagem pelo mundo. Digamos que você se mova sempre para o leste. Como a terra é redonda, eventualmente você voltará ao ponto de partida.

É a mesma cidade, são as mesmas ruas. Se a viagem não foi muito demorada, provavelmente não houve muitas mudanças (vamos supor que esse é o caso).

Depois da viagem, por mais que esteja tudo igual e seja tudo familiar, você não enxergará mais como antes. Você perceberá coisas que não notava antes. Talvez você descubra novos atalhos, comece a andar mais de bicicleta ou deixe o carro em casa e caminhe mais. O fato é que, embora esteja tudo igual, você mudou. Se você fizer várias viagens assim, a cada vez sua cidade natal parecerá diferente.

Note que quando você partiu pela primeira vez, aquela era a única cidade que você conhecia. Então, para poder se situar nas outras, você teve que partir desse conhecimento que você já possuía e, usando analogias, instinto, esperteza, etc., você, bem ou mal, conseguiu andar por ali, naquele ambiente completamente novo. A cada cidade no caminho, o conhecimento das cidades anteriores ajudou na exploração.

Por fim, quando você retorna à sua cidade, é quase como se você a conhecesse pela primeira vez (isso será tanto mais verdade quanto mais longa for a viagem). O conhecimento dos locais por onde você passou fará com você veja muita coisa com novos olhos.

Assim ocorre no Budô. No seu primeiro dia no Karatê você aprenderá os rudimentos do soco. Quando você estiver se preparando para o exame de 3º Dan, fatalmente você vai parar no meio do treino para pensar sobre a posição de sua mão, a trajetória ou sobre o seu jeito de fechar o punho (sou testemunha de que isso acontece). Pequenas coisas, que aparentemente seriam triviais para alguém que pratica há tanto tempo, não são, para o verdadeiro adepto, nada triviais.

O mesmo ocorre no Aikidô ou, imagino, em qualquer outra forma de Budô. Já repararam que a lista de técnicas exigidas nos exames varia muito pouco a partir de certa graduação? Isso não é um acidente. O que os examinadores esperam ver é um nível de execução diferente, mais refinado da mesma coisa que você apresentou no exame anterior.

Espera-se que sua execução mostre, externamente, aquilo que mudou no seu interior.

No Budô freqüentemente se diz que, para o progresso, é preciso receber o ensinamento com mente de principiante (“shoshin” em japonês).

Isso quer dizer muita coisa, se pensarmos nas analogias acima. O principiante não sabe nada e, portanto, é uma folha em branco onde os ensinamentos podem ser escritos. Ele absorve rápido. Isso quer dizer que sua curva de aprendizagem é bastante inclinada e cresce depressa. Com o tempo, à medida que ele sabe mais, fica cada vez mais difícil aprender coisas novas e o ritmo de aprendizado diminui até o ponto em que a mente, saturada, não pode aprender nada novo. A curva de aprendizado fica plana, como um degrau. E é um degrau. Nesse ponto, o aluno vai estagnar por um tempo e praticar as mesmas coisas até “digerir” o que aprendeu e conseguir esvaziar a mente. Na linguagem da informática, ele vai ter que processar até liberar a memória. Desse ponto em diante ele estará apto a aprender novidades novamente. Até o próximo degrau…

Espera-se que tanto o principiante quanto o aluno avançado tenham shoshin, essa mente aberta, que corresponde à mente de principiante.

À medida que o aluno percorre o caminho, à medida em que sobe a nossa torre, ou à medida em que conhece novas cidades, haverá momentos em que o velho conhecimento não servirá, ou então que ele terá que lembrar de coisas há muito passadas para poder seguir à frente. Em andares diferentes, tanto o principiante quanto o avançado, estarão olhando para a mesma paisagem. Mas de perspectivas diferentes.

Imagine que estejam olhando para alguma coisa que está próxima às paredes da torre e fixa no solo:

Pela proximidade, o principiante, que está nos primeiros andares terá uma visão até mais nítida e detalhada enquanto que o avançado, que está lá no alto verá menos detalhes. Os dois vêem a mesma coisa, mas não vêem igual.

Enquanto o novato vê com nitidez os detalhes, o veterano pode enxergar melhor como aquela coisa se relaciona com o terreno à sua volta.

Pode ser que, para uma dada tarefa ou um dado obstáculo no caminho, o veterano tenha que descer vários andares para poder enxergar melhor algo bem básico, que está lá, perto do solo. Talvez, relembrar uma antiga lição que foi há muito esquecida ou então, que nem foi aprendida direito, pois ainda não estava preparado na ocasião.

Assim se percorre o caminho. Como disse Kanazawa Sensei certa vez, dois passos para frente e um passo para trás…

Por mais que você avance no caminho, se você se concentra apenas na meta e esquece de onde veio, corre-se o risco de se perder ou de perder o ímpeto de avançar. O caminho não tem fim, mas você sempre pode voltar e reavaliar…

Do mesmo modo se ambos estiverem olhando para algo que está distante da torre, próximo ao horizonte, ou então algo que está no topo de uma montanha, também pode ser que os dois consigam enxergar o objeto. Os dois vêem a mesma coisa, mas não vêem igual.

Poder ver apenas parcialmente algo distante pode servir de incentivo para o principiante subir mais degraus e alcançar as janelas superiores e, do mesmo modo, pode ser que o veterano precise descer um ou vários níveis para conseguir enxergar melhor, por outro ângulo, com outra perspectiva.

Por isso, esse o caminho marcial exige a prática constante e a constante volta aos princípios básicos. A constante reavaliação. Espera-se que a prática exaustiva do básico forme um reflexo condicionado, uma segunda natureza que permita lidar melhor com o desconhecido ou o inesperado.

Na faculdade de física, lembro-me de um professor assim. Embora brasileiro, falava com um ligeiro sotaque alemão. Filho de imigrantes, depois de formado em física aqui, foi para a Alemanha para continuar seus estudos. Lá, diziam, foi aluno do famoso Von Braum. Quando tive aulas com ele podia-se perceber a sua maestria quando estava conosco no laboratório. Ele não precisava de fórmulas ou de pensar muito para resolver as nossas dúvidas. Ele simplesmente sabia. Isso não era só com as situações previsíveis, com as aulas preparadas ou com os experimentos que ele já tinha realizado tantas vezes antes. Mais de uma vez eu o vi, diante de uma situação totalmente nova, que contradizia os manuais, simplesmente ter um estalo e, partindo se algo que era um enigma para nós e para ele, conseguir uma resposta pronta, completa e elegante.

Ele não precisava mais de fórmulas (muitas das quais ele nem lembrava  de cabeça mesmo). Um profundo conhecimento da natureza, forjado pela prática do básico, fazia com que ele simplesmente soubesse e pronto.

Como um praticante avançado, que de tanto saber a técnica, não precisa mais da técnica conscientemente e simplesmente se move, ao sabor da situação. Como um praticante que já foi até o alto da torre e agora volta para poder explorar a paisagem com menos pressa, saboreando a vista, ou aquele que já deu a volta ao mundo e agora pode viajar sem pressa, explorando trilhas laterais, parando para apreciar o pôr-do-sol ou olhar para cima e saborear uma bela noite estrelada.

 

Anderson Gomes

Brasília, 14 de agosto de 2009.