Delicadeza

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Delicadeza

No nosso dojô há uma placa. Nosso Dojô-Kun, conforme era ensinado pelo Mestre Martins…

Nela aparecem as 7 orientações daquilo que o o praticante deveria buscar ali, no dojô, palavra que quer dizer “Lugar onde se segue/pratica o Caminho”, um termo budista para designar o local de prática buscando a compreensão profunda ou iluminação: Determinação, Disciplina, Dedicação, Desprendimento, Fé Esperança e Caridade.

Por uma coincidência da língua portuguesa, os quatro primeiros itens começam pela letra “D”. Por conta disso, para fixarmos, quando não havia a placa, era comum, o sensei repetir para nós, como um mnemônico, “O Aikidô é composto de quatro D´s…”

Duas semanas atrás, tive a oportunidade de treinar o dia inteiro com Shikanai Sensei, nosso Shihan. A ênfase do treino foi em uma prática que visa o que ele chama de “encaixe”. Não só uma conexão entre mão que ataca e mão que defende, mas a melhor conexão. Não apenas conexão entre atacante e defensor, mas a melhor conexão, não apenas uma conexão instantânea, no momento do encontro, mas a melhor conexão.

E o que seria essa melhor conexão, esse “encaixe” de que o mestre fala?

Uke e nage devem conectar-se no instante do contato (e mesmo antes, se considerarmos a antecipação do movimento) e essa conexão deve ser eficiente.

Mas a eficiência de que se fala aqui não é apenas a eficiência de uma conexão que torna-se a base, o primeiro momento de uma técnica eficaz e que coloca o outro fora de combate. Não é a abertura de um jogo de xadrez, que é o início de uma batalha de corpos e intenções.

A conexão eficiente, do ponto de vista do Aikidô, quer dizer uma conexão sem turbulência, sem choque ou ondas de choque secundárias, o ataque é recebido com a maior naturalidade, sem opor força física ou intenção. A mão que ataca simplesmente, poderíamos dizer, singelamente, simplesmente se encaixa, suavemente, independente de velocidade e força, na mão que defende. E esse encaixe é o ponto inicial de um encaixe entre um corpo e outro e, por fim entre as duas vontades, de modo que formando um só bloco, atacante e defensor movam-se juntos e harmoniosamente até o final.

Conexão sem ruído…

Sem ansiedade que vira pressa, sem truculência, que vira força para desequilibrar, sem passividade, que vira atraso a ser compensado por excesso de velocidade. No tempo certo, com a atitude certa.

Tempestivamente.

É receber o atacante como a um ilustre visitante…

Durante o dia, o sensei pronunciou essa palavra apenas uma vez: “Delicadeza”. Mas quão significativo…

A conexão, uma vez estabelecida, deve ser tratada com delicadeza. Com delicadeza o nage deve procurar mover-se de forma a conduzir o conjunto uke-nage sem choque, sem “incomodar” o outro. A relação, iniciada pela conexão, deve ser cuidada com delicadeza, até o momento final, sem que, no entanto, busque intencionalmente o momento final.

Isso pode parecer enigmático ou filosófico. Abstrato demais para uma arte marcial.

Mas o fato é que, o que diferencia o Aikidô do fundador Morihei Ueshiba da técnica de Koryu Jujutsu, de defesa pessoal ou combate real é justamente a preocupação de convencer e não de vencer.

Sendo assim, uma conexão que é feita pensando em vencer, derrubar, arremessar ou imobilizar, que se preocupa com o resultado final, com a meta ao invés de preocupar-se com o percurso, em como o caminho é percorrido, não é Aikidô.

Delicadeza é zelar para que a conexão, o momento do encontro, torne-se um encaixe e mantenha-se assim durante todo o movimento, toda a relação (e por isso diz-se que o movimento é um movimento só). A preocupação (e essa não é uma palavra muito boa, pois parece opor-se ao necessário relaxamento), não deve ser com o final, com o objetivo (derrubar, arremessar, imobilizar, vencer) e sim em manter a relação/conexão/encaixe estável e harmoniosa durante todo o contato.

Delicadeza, no sentido de dedicar-se a manter a relação sem choque, harmoniosa, sem recorrer a força e velocidade para compensar, é o oposto de levar pela dor, pelo desequilíbrio do tipo alavanca, “enterrar” o adversário no chão, imobilizar pela torção excessiva.

Delicadeza é que permite mover-se em paz por dentro de um ataque turbulento e converter a turbulência em harmonia.

Ao invés de força e velocidade para “resolver” uma situação, delicadeza e postura para “conduzir” uma situação.

Aikidô sem delicadeza lembra uma anedota contada por John Stevens no final de seu livro “Invincible Warrior”: Um aluno estrangeiro ao ser apresentado ao fundador, cumprimentou-o efusivamente, “Que maravilha poder treinar o seu Aikidô!”, ao que o fundador respondeu, com certa melancolia, “Que estranho! Hoje em dia cada um que fazer o seu próprio Aikidô…”

Mesmo consciente que delicadeza não vai te tornar campeão de MMA ou algum tipo de lutador invencível, essa é a escolha do Aikidô. Foi a escolha do fundador. Todo praticante deve ter em mente que Aikidô sem este senso de delicadeza é, por definição, incompleto.

Aikidô não é a luta ou arte marcial mais eficiente para deter ou vencer pessoas. Serve apenas para harmonizar, tentar convencer. Sem meta, sem intenção, apenas seguir o fluxo do movimento mútuo, saborear a relação e deixar ir. Sem dano.

Delicadeza é o quinto D!

 

Anderson Gomes de Oliveira

Brasília, 26 de abril de 2016.