Comentário sobre “O Livro do Céu”, de Miyamoto Musashi.
Como muitos estudiosos, autores e estudantes de Budô fizeram antes de mim (e com certeza, muitos ainda farão), resolvi escrever um comentário sobre o último pergaminho (ou capitulo) da obra-prima de Musashi, o Livro dos Cinco Elementos (ou dos Cinco Anéis).
Meu primeiro contato com o texto se deu quando eu iniciava meus treinamentos de Karatê, quando eu ainda tinha 15 anos e, portanto, ainda era muito imaturo (tanto em idade quanto em tempo de treinamento) para compreender em profundidade.
De qualquer modo, o texto capturou minha atenção desde a primeira vez. Desde o início me pareceu que havia algo profundo e que valia a pena ler, estudar e entender naquele texto.
Os primeiros quatro livros são bastante objetivos e neles Musashi parte do concreto para aplicações práticas e não se perde em abstrações. Excetuando, claro, as partes exclusivamente técnicas, onde Musashi fala de técnicas de esgrima, coisa que eu não podia entender à época, os textos, em geral, são razoavelmente claros e, mesmo aos 15 anos, já (achava que) podia entender razoavelmente bem o que ele queria dizer.
Os primeiros 4 capítulos são como as técnicas que você aprende em arte marcial. A cada repetição (leitura) você vai aprendendo mais alguma coisa. Você vive mais um pouco, treina mais um pouco, e aí lê novamente e consegue “pescar” mais alguma coisa, mais alguma sutileza. Entender os 4 primeiros me parece que trata-se de uma questão mais, digamos, técnica, no sentido que você entende alguma coisa mesmo sendo um adolescente novato e vai entendo mais à medida que amadurece e treina mais e regularmente retoma a leitura.
No entanto, o quinto capítulo, o Livro do Céu, me pareceu um enigma.
Na verdade, com os anos percebi que, mesmo considerando a questão da imaturidade, o texto era (e é) um enigma para seus leitores desde que foi escrito.
Há uma espécie de degrau aqui. O texto permaneceu impenetrável por anos e anos. Pelo menos assim me pareceu…
Há vários problemas.
Primeiramente, o texto foi escrito para complementar a transmissão direta do Mestre Musashi para seus 3 discípulos mais próximos. Ora, havia uma relação pessoal mestre-discípulo de muitos anos entre eles. É claro que muita coisa da essência do texto está nas entrelinhas e, possivelmente, era muito mais claro para seus discípulos diretos do que poderia ser para nós, que não estudamos e convivemos diretamente com o autor (voltaremos a falar sobre a questão da transmissão direta mais adiante, quando comentarmos o texto propriamente dito).
Em segundo lugar, o texto foi escrito em japonês medieval e sua leitura é difícil mesmo para os japoneses de hoje em dia. Quando lemos uma tradução do livro em alguma língua ocidental temos que levar em conta que esse texto já é, em geral, uma tradução de uma tradução, pois a edições japonesas atuais tiveram que ser “traduzidas” do japonês medieval.
Uma terceira dificuldade em se capturar o sentido do texto está no fato de que o livro original não existe mais. A cópia mais antiga, na qual se baseiam a maioria das traduções modernas, já é uma transcrição feita (de memória) por um dos três discípulos de Musashi do texto original.
A quarta dificuldade refere-se ainda ao processo de tradução. A tradução de uma língua oriental para uma língua ocidental é sempre um processo delicado. Como as “lógicas” da civilização ocidental e oriental são bem diferentes, o risco de se alterar o sentido é bem maior do que quando se traduz línguas mais próximas (tanto no sentido etimológico quanto no sentido étnico).
Há ainda o importantíssimo fato de que a maioria dos tradutores não é praticante de arte marcial e, assim, claro, há grande risco de perda de nuanças e sutilezas do sentido original.
Arrisquei-me a escrever o comentário que segue a partir de dois pontos.
O primeiro é a tradução do Japonês, que considerei, de todas as que já li, a mais cuidadosa e confiável. O tradutor, Kenji Tokitsu, é japonês, formado em Sociologia pela Universidade Hitotsubashi (Tóquio), doutor em Sociologia e em Línguas Orientais pela Sorbonne (Paris). Tokitsu é também um mestre em Karatê e Kenjutsu. Sendo um nativo japonês e um acadêmico, com doutorado em linguística, podemos com maior fiabilidade considerá-lo um conhecedor da língua japonesa. Além disso, ele recorreu à ajuda de acadêmicos da área de japonês medieval para os pontos mais complicados. O autor conhece bem a língua francesa, com dois doutorados em universidades francesas e, portanto, considero sua tradução do texto de Musashi para o francês como bastante autorizada. Mais ainda pelo fato de ser um pesquisador e praticante avançado de Budô
A transcrição a seguir é a tradução, do francês para o português do 5º capítulo da Obra de Musashi, contida no seu livro “Miyamoto Musashi, Maître de Sabre Japonais du XVII Siècle”, Éditions DésIris, France, 1998.
O outro ponto que me motivou foi que recentemente alguns pontos, especialmente sobre a transmissão nas artes marciais, subitamente se tornaram um pouco mais claros para mim. Isso me fez revisitar o texto e passei a perceber pontos que antes nem me ocorriam. Pareceu-me que poderia ser útil para outros se eu compartilhasse tanto a tradução (inédita para o português) quanto algumas de minhas percepções.
O itens entre colchetes foram acrescentados por mim numa tentativa de não perder as nuanças do francês original. Fiz isso quando a palavra ou expressão usada poderia ter mais de uma tradução para o português ou quando algo implícito no texto não aparecia textualmente podendo gerar alguma ambiguidade.
Sugiro que o texto traduzido, a seguir seja lido algumas vezes, com cuidado e atenção, mesmo para os que já o conhecem, para, em seguida, passar aos comentários.
O Livro do Céu
Neste Livro do Céu, eu explicito o caminho da estratégia da minha Escola dos Dois Sabres.
O sentido [literal] do Vazio é o espaço onde não há nada e eu concebo também o Vazio como aquilo que não pode ser conhecido [diretamente pela razão]. O Vazio é, obviamente [no senso comum], lá onde não há nada.
Conhecer aquilo que não existe [o subjetivo, o imponderável, o espiritual] a partir daquilo que, efetivamente existe [materialmente, objetivamente, concretamente]. Isso é o Vazio.
Neste mundo, alguns consideram o Vazio de modo errado, interpretando-o como o fato de não se distinguir uma coisa da outra [desviando-se da doutrina que nega a dualidade]. Isso provém de um espírito desorientado [desviado, perdido, afastado do caminho correto], não é o verdadeiro Vazio.
Para o Caminho da Estratégia, igualmente, o Vazio não quer dizer ignorar [desconhecer, não tomar conhecimento] da Lei para praticar o Caminho do Guerreiro. Também se fala do Vazio quando não se sabe o que fazer, em razão de múltiplas dúvidas, mas esse também não é o verdadeiro Vazio.
O guerreiro deve aprender o Caminho da Estratégia com convicção [Determinação], praticando bem as diferentes disciplinas das Artes Marciais, ele não deve ser ignorante em nada que se refira à prática do Caminho dos Guerreiros [Bushidô].
Ele deve colocá-lo [o Bushidô] em prática do amanhecer ao anoitecer, sem se desgastar [fisicamente] e sem permitir que seu espírito se desvie [se perca, divague]. Ele deve polir seu espírito e sua vontade, e afiar os dois modos de ver: o modo que consiste em examinar minunciosamente [observar com atenção] e o modo que consiste em olhar [ver, sem se prender a pequenos detalhes, de modo geral ou distanciado, sem apego a minúcias]. É preciso saber que o verdadeiro Vazio está lá, onde as nuvens da incerteza estão completamente dissipadas.
Tanto quanto ignorardes o verdadeiro Caminho, mesmo que penseis estar seguindo um caminho correto [verdadeiro] segundo as Leis Budistas [dos Céus] ou as leis deste mundo, desviarás do caminho correto, pois tenderá a vos superestimar e vossa visão será deformada.
Compreendereis o Verdadeiro Caminho quando virdes as coisas a partir da via direta do espírito, tomando como referência a Grande Regra [Tao ou MIchi] desse Mundo.
Conheça este estado de espírito e tome como fundamental aquilo que é reto, conceba o Caminho com um espírito sincero, pratique a estratégia com uma visão ampla [como algo que tem aplicações em todos os aspectos da vida e não apenas referindo-se ao combate], pense naquilo que é grande [nos grandes problemas ou nas coisas realmente importantes, por oposição às pequenas [irrelevantes] coisas ou ninharias] com objetividade e clareza.
Conceba a Vacuidade como Caminho e o Caminho como Vacuidade.
No Vazio existe o bem. E o mal não existe.
A sabedoria existe, o princípio existe, o caminho existe e o espírito, o espírito também é vacuidade.
Décimo segundo dia do quinto mês de 1645.
Shinmen Musashi.
Comentários
1) Tornar-se o caminho
Musashi concebia a arte marcial num sentido mais amplo do que normalmente fazemos hoje em dia. Para ele não se tratava apenas de técnicas e truques, mas algo muito mais amplo, que deveria se estender a todas as atividades da vida. Por isso ele usa o termo mais amplo, Estratégia (Hyohô em japonês) ao invés de Budô ou arte marcial. Para ele, todos os caminhos eram um só e, ao seguir o caminho corretamente e com convicção (não apenas o caminho do guerreiro, mas qualquer outro), a transcendência inerente ao caminho, permearia todas as atividades, ao ponto de homem e caminho confundirem-se em um só.
As sentenças finais do texto vão nessa direção: “(…) conceba a vacuidade (a qualidade do Vazio) como caminho e o caminho como vacuidade (…)” e “(…) o espírito também é vacuidade.”
Assim, vacuidade (o Vazio), o caminho e o espírito são (serão) um só.
Há um ensinamento, cujo autor desconheço, que diz o mesmo através de um paradoxo:
“Seguir o caminho é esvaziar a mente. “
“Saber um pouco menos a cada dia. “
“Até que, no final, você e o caminho sejam um só. “
“Como sempre foram.”
Note o uso dos termos caminho, vazio (esvaziar) e mente (representando o humano, o espírito) seguindo em paralelo com o ensinamento de Musashi.
2) Sobre a transmissão direta, de coração para coração.
Sobre a transmissão da arte marcial e do caminho é que o texto tem mais a dizer.
Originalmente o pensamento que me inspirou a escrever o texto ocorreu-me a considerar os ensinamentos que recebi e comparar isso com o conhecimento que se pode adquirir através de vídeos e textos instrucionais sobre artes marciais.
Ora, inicialmente sempre me considerei bastante inepto em aprender através de livros e vídeos. Embora eu possua uma grande biblioteca e uma grande videoteca com excelentes títulos, sempre gostei, nos livros, mais dos textos, especialmente a parte histórica ou quando o autor se dispunha a discorrer sobre a filosofia ou sua experiência pessoal, do que da parte técnica. Isso talvez porque, inicialmente eu não aprendia nada vendo os vídeos ou lendo os livros. Progressivamente comecei a “pescar” alguns detalhes e isso foi progressivamente aumentando. Hoje, muitas vezes consigo realmente entender algumas nuanças e mesmo imitar e entender a movimentação conforme sugerida pelo autor nas fotografias e descrições técnicas ou nos vídeos e, em muitos casos, incorporar isso em minha prática pessoal, complementando o ensinamento de meus mestres.
No entanto, por mais que eu consiga fazer isso (e ainda estou longe de apreender 100%), sempre fica a impressão de que algo é qualitativamente diferente da experiência pessoal de receber o ensinamento diretamente, do próprio mestre, atacando e sendo derrubado, sendo atacado por ele e derrubando-o. Recebendo as explicações e/ou dicas junto com o processo do aprendizado direto, “por contato”.
Por mais que se possa aprender em vídeos ou livros, a experiência é limitada no sentido em que, ao estarmos juntos, no mesmo tatame, há algo “invisível” que torna o aprendizado qualitativamente diferente.
“Conhecer aquilo que não existe a partir daquilo que, efetivamente, existe. Isso é o Vazio.”
A técnica é o concreto. A experiência e a vivência daquele que transmite e que, de algum modo “contaminam” a técnica são coisa que não têm existência concreta, mas que estão impressas profundamente na execução.
Também algo que não é concreto é a atitude daquele que recebe o ensinamento. Assim como a técnica precisa dos dois para se concretizar, é necessária a ligação espiritual entre mestre e discípulo. Toda a experiência anterior do discípulo e sua atitude naqueles momentos vão influenciar e imprimir sua marca no resultado final.
A atitude do mestre e a atitude do discípulo no momento criam um tipo de ligação que não pode ser repetida exatamente em nenhum outro momento e também nunca exatamente com outras duas pessoas.
Não é essa a diferença entre arte e artesanato? Uma obra de artesanato pode ser repetida pela técnica. Uma obra de arte é única.
Quando se treina junto, além do conhecimento concreto, material, da técnica em si, há um lado intuitivo que se desenvolve. Quando o mestre mostra diretamente para você, quando executa com você, além do conhecimento concreto, há o inefável, o implícito. Algo que eu chamaria de “comunicação espiritual”. Não digo isso num sentido religioso ou sobrenatural. Pelo contrário, me parece extremamente natural. Parte intrínseca do caminho.
Quando a transmissão é direta, além da técnica, estão envolvidos o sentimento e a transmissão implícita da experiência que o próprio mestre viveu para aprender aquele mínimo detalhe técnico. E antes dele, a experiência do mestre dele e assim por diante até um mínimo resquício da experiência daquele que executou/experimentou aquele detalhe ou aquela técnica pela primeira vez.
Não só a experiência para aprender, mas a experiência que cada um teve ensinando e mostrando, uma geração após a outra, tudo contribui para a transmissão que está sendo realizada naquele momento.
O próprio Musashi, na parte final do primeiro capítulo “O Livro da Terra” explicita sua opinião sobre o mesmo ponto: “(…) Se desejais aprender a Estratégia, devereis meditar sobre o que eu escrevo e praticar sem cessar, mestre e discípulo juntos de tal modo que o mestre seja a agulha e o discípulo a linha (…).”
3) Sobre o visível e o invisível.
Há o componente visível, real, concreto, que é a técnica em si, como está sendo mostrada naquele momento, envolvendo aquelas pessoas, naquele ambiente particular. Isso é o que se vê.
Há o componente invisível, que comparo a uma onda ou vibração. Quando um violino toca certa nota, é emitida uma onda com certa frequência. Se um piano toca a mesma nota, é emitida uma onda com exatamente a mesma frequência. No entanto os sons são diferentes e um conhecedor distingue facilmente um do outro. As ondas têm uma qualidade chamada timbre, que se relaciona com a forma da onda. Embora a frequência (e, portanto a nota seja a mesma), a forma das duas ondas é diferente e, se forem decompostas em partes componentes, obteremos um conjunto diferente de partes para cada instrumento. Somadas, ambos os conjuntos de partes produzem a mesma nota.
Dois mestres ensinando a mesma técnica para pessoas diferentes, assim como o mesmo mestre ensinando para dois alunos diferentes ou mesmo ensinando a mesma técnica para o mesmo aluno em momentos diferentes podem até produzir a mesma nota (técnica) e/ou tocar a mesma música, mas o timbre será ligeiramente diferente, pois a vibrações envolvidas nunca serão iguais e, assim, o arranjo não será o mesmo.
Do mesmo modo, dois maestros podem reger uma orquestra e tocar a mesma sinfonia de Beethoven. A interação entre o maestro e a orquestra, os detalhes do arranjo e dos ensaios, a acústica da sala, tudo isso contribuirá para produzir um resultado diferente. Supondo que sejam bons maestros, que estejam regendo uma boa orquestra e que tudo ocorra como planejado e ensaiado, mesmo assim a música produzida não será igual. A vibração será diferente.
Musashi cita que o guerreiro deve “(…) afiar os dois modos de ver: o modo que consiste em examinar minunciosamente [observar com atenção] e o modo que consiste em olhar [ver, sem se prender a pequenos detalhes, de modo geral ou distanciado, sem apego a minúcias](…)”.
À medida que percorre o caminho a capacidade de observação deve melhorar. O adepto deve melhorar o seu “ouvido” e conseguir perceber cada vez mais as sutilezas da música. Ele deve ser capaz de captar a melodia como um todo (ver, no sentido de Musashi) e também perceber os detalhes das notas e pausas (observar, examinar no sentido de Musashi).
Mesmo que ele ainda não esteja preparado para perceber os detalhes do timbre, ao receber a transmissão direta, mesmo que ainda só perceba o que pode ser visto, a vibração diferenciada da transmissão direta ficará impregnada nele (como aquelas músicas que ficam lá no nosso subconsciente), um dia, quando o ouvido estiver bem treinado e preparado, ele poderá enxergar/escutar o Invisível.
O invisível e o visível existem nas coisas mais simples e triviais, assim como no caminho do guerreiro.
O que é um abraço?
A mecânica é simples. Encostar, envolver com os braços (e ser envolvido) e apertar.
No entanto, que diferença num abraço casual e um abraço “especial”.
Duas pessoas se encontram e se abraçam. Imagine que sejam duas pessoas que gostam muito uma da outra e que uma delas, ou ambas, estejam passando (ou tenham passado) por uma situação muito difícil ou, então, que não se veem há muito tempo. Nessa situação há um tipo de calor que não tem a ver com as diferenças de temperatura entre os corpos e o ambiente.
Há algo mais. Uma sensação de conforto e proteção que não são físicas. Isso é o invisível.
4) Outras manifestações do invisível
Há o invisível em cada ensinamento. Uma vez que é impossível treinar todas as possibilidades de defesas para todos os possíveis ataques, uma coisa que está nas entrelinhas das técnicas é a Generalidade. Se o princípio (essência) é transmitido/mostrado (e entendido) corretamente, a partir de uma técnica treinada passa-se à compreensão de outras situações.
É o desenvolvimento da reflexologia. No Livro da Água, Musashi diz “(…) É essencial praticar com diligência afim de que o corpo se torne a Estratégia (…)” e, no Livro da Terra “(…) A estratégia de um general consiste em aplicar, em larga escala, aquilo que foi estudado em pequena escala. É a mesma coisa que conceber uma grande estátua do Buda a partir de um modelo de 30 centímetros. É difícil de explicá-lo em detalhes [com palavras ou com escrita], mas o princípio [a essência] da Estratégia é conhecer dez mil coisas a partir de uma única (…)”.
A outra manifestação que me parece digna de nota é o treino coletivo.
Ao início do treino é muito comum que mestre e discípulos reverenciem alguma foto ou pintura ou caligrafia do mestre fundador da arte, do estilo ou da academia, por exemplo.
Eu mesmo já ouvi o mestre dizer: “Quando eu estou aqui ensinando, o mestre (o fundador) está aqui comigo”.
No início isso me parecia uma crença ou fé muito pessoal. Algo que era tão real quanto se acreditasse nisso e não algo objetivo. Enfim, não era algo em que eu acreditasse literalmente.
Mas hoje eu observo algo interessante. Quando treinamos juntos, vários alunos do mesmo mestre, especialmente no treino de graduados, onde temos alunos de muitos anos e o mestre às vezes não está presente, mesmo assim, há uma sensação da presença do mestre. Tanto há a sensação boa quando algo vai muito bem (como se o mestre estivesse contente) quanto há a sensação ruim, quando algo vai mal (como quando ocorre um acidente).
Há sensação é mais intensa quando há mais alunos do que quando há poucos.
Embora seja algo que possa ser considerado subjetivo, psicológico e pessoal, as evidências me levam a considerar isso mais do que algo imaginário.
O primeiro ponto interessante é que, quando há mais alunos a sensação é mais forte.
Sugiro uma explicação para isso.
Quando o mestre transmite o ensinamento ele se materializa na execução da técnica pelo discípulo. A cada coisa aprendida um novo ensinamento se torna material no sentido em que ele faz parte da execução da técnica.
Pode-se dizer que cada aprendizado carrega de certa forma, a assinatura de quem ensinou.
Isso ocorre com as ondas. Quando um instrumento musical soa uma nota, a forma da onda (o padrão da vibração) depende diretamente das características físicas do instrumento. Algumas características são dinâmicas, como a afinação, temperatura ambiente, umidade do ar, altitude, etc.. Outras são parte do próprio instrumento e dependem da forma exata de cada parte e das relações exatas entre as partes. Cada instrumento soa diferente, tem uma assinatura, que chamamos de “timbre”.
Em termos de ondas, cada onda pode ser decomposta em ondas componentes. Uma onda pode ser construída a partir das componentes da seguinte forma: se fizermos soar simultaneamente todas as componentes, a vibração resultante será exatamente a mesma que a onda original.
A física nos diz que a matéria, embora possa parecer sólida é, na verdade, vibração. As partículas que nos constituem e ao mundo material são, ao mesmo tempo, ondas. É isso que nos diz a Teoria Quântica.
Assim, o mestre, enquanto indivíduo é também, ao mesmo tempo, um instrumento/onda. Sua vibração, a manifestação de sua existência no mundo material em relação à matéria que o cerca é única. Uma onda com timbre/formato/assinatura característicos.
Se tudo o que constitui a pessoa: a parte física, a razão, a crença e a emoção puder ser considerado como vibração, a vibração característica que representa e É aquele indivíduo, pode ser considerada como uma soma (no sentido ondulatório) de ondas componentes.
Se o próprio ensinamento pode ser visto como vibração, a vibração que é o discípulo ficará um pouco modificada com a adição dessa nova vibração. Assim, ao final de muitos anos de convívio e tantos ensinamentos, a vibração que é o discípulo estará muito modificada e quanto mais tiver sido absorvido, maior será a importância dessas ondas que constituem o ensinamento do mestre na onda total que é o discípulo.
Ora, quando todos estão treinando juntos, a vibração naquele momento e naquele ambiente será uma soma “ondulatória” das vibrações individuais de cada praticante. Cada presente emite sua onda.
Se essas vibrações individuais carregam em si a vibração do mestre, a vibração resultante de todas elas juntas carregará, também, entre a suas ondas constituintes, uma parcela grande da vibração do próprio mestre, mesmo ele não esteja pessoalmente presente.
Se a vibração dele estiver ali, de certa forma, ele estará ali.
Por isso a sensação agradável de um treino assim, harmônico. Não é à toa que usamos essas palavras para descrever um treino harmonioso. Ondas em fase (em harmonia) de somam e produzem uma vibração mais forte. Ondas fora de fase (em desarmonia) se anulam.
Quanto mais os discípulos carregarem o mestre em si, mais o mestre estará presente quando estiverem treinando juntos, seguindo o Caminho.
Assim ensinou Jesus: “E onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estarei no MEIO deles.” (Mt 18:20).
O Vazio de que fala Musashi, é o “meio” que vibra, armazena e transmite (propaga) essas vibrações.
5) Sobre as virtudes.
O caminho exige disciplina e dedicação: ”(…) Ele deve colocá-lo [o Bushidô] em prática do amanhecer ao anoitecer, sem se desgastar [fisicamente] e sem permitir que seu espírito se desvie [se perca, divague] (…)”.
O caminho exige Esperança e Fé: “É preciso saber que o verdadeiro Vazio está lá, onde as nuvens da incerteza estão completamente dissipadas (…)”.
Esta é a Fé. A fé é a certeza que mata toda dúvida.
O caminho tem em si o potencial de tornar as pessoas, de alguma forma melhores:
No Livro da Água, Musashi diz: “ (…) Seja, hoje, vitorioso sobre aquilo que eras ontem, seja, amanhã, vencedor das suas deficiências e, depois, vitorioso sobre suas próprias habilidades (…)”
Transmitir o caminho, como um ato educacional pleno, é também um ato de amor e na transmissão está presente a virtude da Caridade.
Musashi acreditava nisso: “(…) No Vazio existe o bem. E o mal não existe (…).”
6) Sobre a forma e a essência, razão e intuição.
Para Musashi, o conhecimento adquirido intuitivamente, dissociado da razão e do julgamento parcial, para além da técnica e visando a essência (aquilo que não se vê) é mais importante do que o obtido pela razão e análise objetivas, muito embora não estejam dissociados e um seja o caminho para o outro. Do concreto e objetivo (da forma) para a essência há uma progressão necessária. Chega-se ao Vazio, percorrendo-se o Caminho (praticando a técnica). Do mesmo modo, Musashi organizou sua obra partindo do concreto, começando pelo Livro da Terra e finalizando pelo abstrato, o Livro do Céu (do Vazio).
O estudo objetivo e racional é importante: ”(…) O guerreiro deve aprender o Caminho da Estratégia com convicção [Determinação], praticando bem as diferentes disciplinas das Artes Marciais, ele não deve ser ignorante em nada que se refira à prática do Caminho dos Guerreiros [Bushidô] (…)”.
Mas o objetivo final é a intuição, o ser: “(…) Compreendereis o Verdadeiro Caminho quando vires as coisas a partir da via direta do espírito (…)”.
7) Sobre o objetivo de tudo isso.
Mas, finalmente, surge a questão: de que adianta percorrer o caminho e atingir níveis cada vez maiores de compreensão? Como estamos falando de artes marciais, no fundo, estamos falando de artes que foram criadas e evoluíram originalmente com o intuito de vencer e sobrepujar os outros.
O próprio Musashi participou de quatro grandes batalhas e, durante sua vida, até os 30 anos, venceu mais de 60 duelos (muitos dos quais redundaram em morte ou invalidez do adversário).
Procurar um nível cada vez mais alto nessas artes não seria uma coisa diabólica, ou, no mínimo, “politicamente incorreta”?
E inútil também, porque não? Afinal, de que adianta ser cada vez mais forte se, no final, sempre haverá alguém mais forte e, com o tempo e a idade, declinaremos naturalmente?
Musashi responde assim a essa dúvida: “(…) Conheça este estado de espírito e tome como fundamental aquilo que é reto. Conceba o Caminho com um espírito sincero, pratique a estratégia com uma visão ampla [como algo que tem aplicações em todos os aspectos da vida e não apenas referindo-se ao combate](…)”;
A Estratégia não é apenas uma ferramenta de destruição. O conhecimento e a sabedoria desenvolvidos podem ser aplicados a todos os aspectos da vida. Inclusive para ajudar os outros, governar e liderar bem.
E ele encerra com: “(…) No Vazio existe o bem. E o mal não existe (…).”
Ao atingir o verdadeiro Vazio, a espada (ou a técnica) do guerreiro, que era um instrumento para tirar vidas, converte-se em um instrumento para transmitir conhecimento e vivência, para dissipar a ignorância e, por fim, para dar vidas.
Um caminho para o interior de si mesmo, não para o exterior, em busca de um pódio ou pedestal. O objetivo final não é ser maior nesse mundo, sobrepujar os outros, vencer.
O verdadeiro Caminho é um caminho para a sabedoria, ou como diria Musashi, para a Vacuidade.
Tornar-se a sabedoria. Ser o conhecimento, ser a arte. Avançar do estágio de ter (possuir) uma técnica para o estágio em que arte e artista são um só. Do Ter para o Ser:
“(…) A sabedoria existe, o princípio existe, o caminho existe e o espírito, o espírito também é vacuidade (…)”
Anderson Gomes de Oliveira
Brasília, 22 de março de 2012.